Quando estar à frente do tempo cobra o preço…


Em 2009, publiquei um artigo científico sobre um marcador biológico associado à resposta aguda ao trauma. Na época, a hipótese que propus — de que o aumento do BDNF (fator neurotrófico derivado do cérebro) no momento agudo representava uma tentativa de enfrentamento neurobiológico — foi recebida com certo distanciamento. Era cedo demais, talvez. Pouca gente entendeu o que aquilo significava no plano clínico.

Anos se passaram, e hoje vejo essa hipótese sendo confirmada por novas pesquisas, inclusive em contextos muito semelhantes aos que venho investigando em situações de desastre. A ciência avançou, mas algo dentro de mim permanece marcado: o cansaço de ter que sustentar, por tanto tempo, uma verdade ainda invisível para os outros.

Não é a primeira vez. E, infelizmente, não foi a última.

Nos últimos anos, a mesma lógica tem se repetido em outros campos. Especialmente no reconhecimento de perfis neurodivergentes, como o de muitas meninas e adolescentes com autismo de nível 1 e Dupla Excepcionalidade. Perfis que acompanho de perto — como médica, pesquisadora e mãe. Perfis que revelam talentos brilhantes e sofrimentos silenciosos, muitas vezes ignorados pelas escolas, pelos sistemas de saúde, e até pelas próprias famílias.

Chega um ponto em que a percepção é tão clara que parece até óbvia. Mas o mundo ao redor não vê — ou se recusa a ver. E então, mais uma vez, o que deveria ser acolhido vira uma luta. Uma briga. Um processo. Literalmente, muitas vezes, um processo judicial.

É doloroso perceber que, mesmo com evidências, com relatos consistentes, com sinais clínicos inequívocos, o reconhecimento e o cuidado ainda precisam ser exigidos por vias legais. Estamos falando de crianças. De sofrimento psíquico real. De consequências que se acumulam com o tempo.

Estar à frente do tempo — seja em uma hipótese científica ou na escuta sensível de um paciente ou filhoé muitas vezes caminhar sozinha. É viver anos numa espécie de descompasso entre o que você já sabe internamente e o que o mundo ainda não consegue sustentar.

E isso cobra um preço. Um preço alto. De energia. De saúde. De fé nas instituições.

Mas sigo. Porque sei que essa escuta à frente do tempo também é parte da minha identidade. E sei, sobretudo, que cada vez que uma hipótese se confirma, que uma criança é protegida, que um paciente se reconhece, que uma mãe respira aliviada por não estar mais sozinha — algo se cura. Em mim, e nos outros.

É por isso que continuo.

Simone Hauck | julho de 2025

Simone Hauck

Médica psiquiatra, professora e pesquisadora com mais de 20 anos de experiência nas áreas de saúde mental, psicoterapia e desenvolvimento humano. Mestre e doutora em Psiquiatria e Ciências do Comportamento (UFRGS), com mais de 60 artigos publicados sobre temas como personalidade, Burnout, bem-estar, trauma e resiliência e, recentemente, resposta à catástrofes.

Professora adjunta da Faculdade de Medicina e do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento da UFRGS, também atua como preceptora no Serviço de Psiquiatria do HCPA e como líder do Grupo de Pesquisa em Psiquiatria Psicodinâmica (Psychodinamyc Psychiatry Research Lab - PPRL | HCPA/PPG Psiquiatria e Ciências do Comportamento - UFRGS).

Durante a enchente de maio de 2024, no Rio Grande do Sul, liderou um projeto que avaliou mais de 5 mil pessoas atingidas, mapeando fatores associados à recuperação e à promoção de resiliência em indivíduos e comunidades. Seu grupo de pesquisa atuou ativamente no levantamento e na divulgação de dados em tempo real sobre saúde mental, com o objetivo de informar a população sobre os impactos psicológicos mais comuns — como o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) — e estratégias simples que poderiam ser implementadas pela e para comunidade, para favorecer a recuperação.

Há algum tempo, a convergência de múltiplos fatores aproximou sua trajetória do campo da neurodiversidade, no qual vem se aprofundando. Sua vivência como educadora, pesquisadora e terapeuta embasa o propósito da Hauck& Terra: ajudar pessoas e organizações a acessarem sua identidade mais autêntica, promovendo saúde mental, realização e bem-estar em seus contextos mais amplos.

CRM RS 25699 | RQE 15868

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